O Caolho da Cracolândia


Dionísio.

Seu nome foi escolhido pelo pai, Platão da Silva e pela mãe, Cleópatra dos Santos.

Cosmopolitano, 60 anos.

Sua casa própria é a Terra, sua cama é a terra, e por vezes o concreto.

Seu alimento é tudo aquilo que dá para comer.

Seus pertences são as árvores, os patos no lago, a areia da praia, o sal da água e o pôr do sol.

Certa vez tomou uma surra de estudantes brancos de classe média e ficou cego do olho esquerdo.

Foi o dia em que mais chorou. Não de dor, mas de tristeza. Nunca fizera mal a ninguém na vida para ser tão maltratado.

Ao sair do hospital foi levado por um guarda para a Cracolândia, mesmo sendo avisado que ele não era usuário. O guarda, mesmo assim, disse que lá tinha gente da mesma raça que a dele: imprestáveis.

Desde então foi chamado carinhosamente de o Caolho da Cracolândia.

O fato de ele não gostar da alcunha fê-la pegar mais rápido.

Com a saúde debilitada e com dores após o linchamento, ele não conseguia andar.

Dependia dos viciados para comer.

Com a dependência, seu nível de irritação aumentava, a ponto de ficar dias sem dormir ou comer.

De onde estava sentado via adultos e crianças bem vestidas, lojas, um shopping, bares, cartazes, outdoors, carros.

Um dia, uma corajosa estudante que fazia um programa social com os transeuntes daquela região, foi ter com ele.

"O que fizeram com o senhor?"

Ele respondeu.

"Por que fizeram isso com o senhor?"

Ele ficou espantado com a garota. Ninguém nunca perguntou o porquê da surra. Ninguém nunca pergunta o porquê de mais nada.

Mas ele não sabia.

E aquela pergunta o maltratou por dias. Tinha que saber a razão.

Com seu novo estado mental, recuperou a força nas pernas e as dores pareciam ter passado.

Ele voltou a sua caminhada.

Sentia que por mais simples que fosse, era algo que valia a pena lutar.

Por uma resposta.

As pessoas lutam diariamente por torradeiras, celulares, cadeiras, carros novos, cocaína e maquiagens.

Ele, por uma resposta.

Como um guerreiro ele coloca um capacete de vasilha de alumínio, um colete de saco de estopa, pega uma lança de cabo de vassoura e um escudo de papelão.

Lá vai ele pela cidade, entre os prédios altos, passando pela multidão de escravos do capital, filhos bastardos do deus mercado, passa pelas carroças de metal e tenta ignorar o som e a fumaça do trânsito infernal.

Seu olho direito e atento brilha de alegria.

No fundo sabe que aquilo que mais amava nele se fora, precisava ir.

Enquanto caminhava, coisas passadas brotavam em sua mente febril.

"Para viver a utopia da liberdade, é necessário abandonar a racionalidade desta sociedade irracional.

Lembrou de pai dizendo: "o ser humano é irracional, acha que pode controlar o caos. Ele vive criando regras que não pode cumprir, regras que se perdem no vento do tempo". "Ele se mata por coisas que não são dele e jamais poderão ser. Ninguém tem nada, é tudo emprestado, inclusive a vida. Por quem ? Tanto faz. Só não vamos nos matar pela resposta nem dizer que sabemos sem saber".

A vida não faz sentido e é aí que mora a graça. A vida é aquilo que o corpo responde do pensamento.

A vida tem direção: a morte. O corpo tem limites, mas a imaginação não, encontrado o equilibrio, o sentido é o de menos".

Dionísio volta para o mesmo local onde fora agredido.

Vai esperar ali o quanto for para obter sua resposta.

Um dia aquele branco vai voltar!

Espero que sim, senhor Caolho... espero que sim...

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